Exemplificando o que fora relatado nas proposições teóricas a respeito do trabalho do acompanhamento terapêutico, relata-se um caso clínico que ainda se encontra em atendimento, destacando alguns aspectos do trabalho dessa modalidade de atendimento.
Cabe ressaltar que o relato não abarca todo o processo terapêutico, todavia, representa uma parcela importante das intervenções e avaliações realizadas ao longo dos atendimentos.
Trata-se do caso de um adolescente de 18 anos (chamado aqui de Igor) que fora indicado para o AT (usar-se-á a abreviação AT para nomear o “acompanhante terapêutico”) por meio do contato de uma coordenadora pedagógica de uma escola particular da cidade de São Paulo.
A partir desse contato a coordenadora relatou que o adolescente estava na escola há 1 ano e frequentava o terceiro ano da mesma. Tal escola tem uma particularidade por possuir classes voltadas para pessoas com desenvolvimento atípico e pessoas com dificuldade de aprendizagem (alunos diagnosticados com dislexia, TDAH). Esse aluno em particular estava inserido na classe para alunos com dificuldade de aprendizagem, todavia, a coordenadora relatou que ele estava na mesma por possuir dificuldade de interação com outros alunos.
Tal dado foi de extrema importância para o trabalho do AT, pois já suscitou uma séria de questões refletidas pelo mesmo e discutidas em sua supervisão (salienta-se a importância da supervisão ao longo do processo de acompanhamento). Pensou-se que a própria presença do AT na casa de Igor seria um ponto delicado e possivelmente uma situação difícil para o adolescente, pois ele possuía dificuldade de interação social.
A coordenadora comentou a respeito de sua dificuldade de interação social, de seu isolamento no momento do intervalo e na sala de aula, constantes faltas e dificuldade de interação com os professores. Pontuou-se a necessidade do trabalho de um AT para que o mesmo desenvolvesse o repertório do adolescente e que “tirasse ele de casa, pois ficava muito tempo no computador, indo de seu quarto para a escola e vice-versa” (sic).
Cabe ressaltar que esse contato inicial com a escola e a descrição dos comportamentos que o próprio Igor não emitia na mesma foram importantes para o estabelecimento de objetivos por parte do AT, além da possibilidade de formação de uma parceria entre a escola, visto que a própria instituição destacou essa abertura de comunicação, oferecendo diversos canais para comunicação: reuniões mensais com a coordenadora, contato via telefone.
Inicialmente foi feito um contrato terapêutico entre a tia do adolescente. Desde o início do trabalho foi percebido um distanciamento da mãe (morava em outra residência) e do pai (que morava na mesma casa de Igor). Igor era filho de pais separados e morava na mesma casa com o pai e sua avó paterna. A partir do relato da coordenadora, soube-se que a mãe morava sozinha e tinha o diagnóstico de Depressão Maior. Com isso, o contato mais próximo era da tia paterna do menino que mantinha contato direto com a escola também.
O primeiro dia de atendimento ocorreu na sala da casa de Igor, na qual a tia do menino apresentou o AT e comentou a respeito do trabalho. O AT salientou o que a tia disse e comentou ainda mais sobre aspectos práticos do trabalho. Nesse meio tempo Igor se manteve de cabeça baixa e falava apenas quando perguntado, verbalizando respostas curtas: “É”, “Sim”, “Ok”, “Tá certo” (sic).
Desde o início do processo do acompanhamento avaliações funcionais foram realizadas a partir da observação ao vivo do cliente em seu ambiente natural, relatos da coordenadora, tia e posteriormente, relatos do próprio adolescente. Tal ponto relacionado aos relatos do próprio Igor foram indicadores da evolução no processo e serão comentados a seguir.
Por meio das avaliações iniciais, alguns pontos foram destacados e fizeram parte dos objetivos das intervenções, ressaltando que a avaliação é realizada durante todos os atendimentos, “andando” junto com o processo de intervenção traçado pelo AT. Tais avaliações aglutinaram tanto aspectos formais do comportamento (o que ele fazia, dizia, relatava o que sentia), além de aspectos situacionais, por exemplo: aonde ele se encontrava, quem estava interagindo com ele, o que as pessoas falavam para ele, entre outros.
Abaixo, seguem algumas dessas descrições:
O que ele fazia, dizia, relatava o que sentia | Lugar onde ele estava | Quem estava interagindo com ele |
Ficava de cabeça baixa. | Lugares da casa (exceto em seu quarto), escola. | AT, pai, tia (exceto sua avó), coordenadora da escola. |
Falava baixo. | Lugares da casa (exceto em seu quarto), escola. | AT, pai, tia (exceto sua avó), coordenadora da escola. |
Não “puxava” assunto. | Todos os lugares da casa, parque, escola. | Todas as pessoas. |
Relata querer ficar só em seu quarto. | Quarto. | AT, pai, tia, avó. |
Tabela 1. Avaliação inicial de Igor.
A partir da breve descrição do que fora observado pelo AT, discutem-se alguns pontos que fizeram parte do “foco” direcionado pelo profissional para o desenvolvimento das intervenções. Igor ficava todo o tempo em seu quarto, quando não estava em sua escola. Ficava em seu quarto jogando videogame e/ou jogos de computador e se percebeu que ele verbalizava mais quando estava lá. Julgou-se ser o quarto um lugar em que ele se sentia “seguro” para falar mais alto, levantar a cabeça e a falar de seus pensamentos/sentimentos.
Outro ponto importante é a figura da avó que se mostra como uma pessoa em que ele se sentia mais à vontade para falar, ficar de cabeça mais erguida. A partir da interação com a avó e presenciando a interação entre Igor e a avó, o AT também selecionou “pistas” de como a avó interagia com o menino e como ele se comportava: ela evitava perguntar muitas coisas e sim, esperava ele se aproximar para falar algo; mostrava-se afetiva e ao mesmo tempo sugeria que ele fizesse pequenos favores para ela: ir à padaria, mercado.
A partir dessas “pistas” e da seleção de certos comportamentos a serem desenvolvidos, o AT lançou mão da própria relação com o adolescente (visto que sua presença em seu quarto já fazia parte da intervenção) para iniciar um possível diálogo com o mesmo. Tal aspecto foi pensado por meio de frequentes supervisões ao longo do acompanhamento.
Um dos objetivos iniciais era fazer com que Igor começasse a dialogar com o AT:
– “Puxando” algum assunto e/ou perguntando mais ao invés de responder apenas.
– Sair mais do quarto e frequentar outros lugares da casa e, posteriormente outros lugares fora da casa, além da escola.
– Relatar mais sobre os pensamentos e/ou sentimentos.
A partir daí, o AT iniciou a intervenção em seu quarto, partindo da questão que o quarto era um lugar confortável e onde ele se sentia mais “seguro” para falar. O AT lançava mão do humor (comentando ironicamente alguns fatos do dia-a-dia), comentava muito a respeito de videogame e jogos do computador (assuntos que o cliente dominava), falava que não estava entendendo muito bem o que ele estava falando (quando Igor estava falando baixo e de cabeça baixa).
Durante 2 meses utilizando essa tentativa de diálogo, o cliente apenas verbalizava com respostas fechadas (Sim, não, legal, ok), sendo que no começo do terceiro mês ele perguntou se o AT tinha tomado muita chuva (estava chovendo muito no dia).
A partir daí, o AT ofereceu uma “super” explicação do que tinha ocorrido e se mostrou muito feliz, relatando a respeito da chuva, do tempo e perguntou para ele a respeito do clima de São Paulo. Igor, respondeu a pergunta de forma mais aberta (deu explicações sobre o clima etc). Tal fato foi muito importante, sendo descrito pelo AT que “ele manjava muito sobre o assunto” (sic), apostando que a atenção/interesse do AT possibilitasse que ele começasse a perguntar mais e falar mais sobre outros assuntos.
Tal aposta se tornou realidade e aos poucos outros assuntos foram aparecendo ao longo do processo, visto que o AT servia como modelo (oferecendo explicações para outros temas e direcionado a atenção do cliente para aquilo que ele estava comentando – ou seja – Igor não ficava mais de cabeça baixa).
Ao longo do processo Igor “puxava” mais assunto do AT e começou a perguntar a respeito de diversos assuntos que ele presenciava na TV, Internet. A partir daí, utilizou-se a figura de um cachorro da raça labrador que ficava na garagem da casa e não saia muito para passear. Igor comentou a respeito disso e disse que o cachorro teria que fazer exercícios, pois tinha problemas na coluna. Tal fato fora muito importante para trazer Igor junto do cachorro e propor passeios curtos que aos poucos foi se prolongando.
Igor saia junto com o cachorro e o AT o que possibilitou sua saída de casa, além de que ele saia do quarto e pôde circular mais pela casa, visto que o AT o levava para a sala da mesma para falar a respeito do passeio que tinha feito. A avó ficava sentada na sala vendo TV e desligava a mesma para escutar o que Igor tinha para falar.
Destaca-se que muitas intervenções ocorreram ao longo do processo, sendo que o AT se utilizou da própria interação com o cliente para desenvolver repertórios básicos de comunicação e de aspectos formais perante a interação (altura da voz, posição da cabeça), além de técnicas que foram inseridas ao longo dos diálogos e dos passeios ao parque junto com o cachorro (exposição ao vivo, treinamento de habilidades sociais, ensaios comportamentais); utilização da atenção como reforço positivo, objetivando a generalização de comportamentos, visto que, posteriormente, Igor começou a interagir com um colega de classe e começou a frequentar o parque que frequentava com o AT e o cachorro.
Cabe pontuar que a parceria com a escola se manteve durante todo o processo revelando muitos aspectos da interação de Igor com os amigos e sua “postura” em relação aos professores. A própria coordenadora revelou mudanças em Igor, como o início de uma aproximação entre ele e um colega de classe.
Considerando que o processo terapêutico ainda se encontra em desenvolvimento com outras intervenções e novos objetivos/avaliações.
Para mais informações sobre o trabalho do AT, clique aqui
[Trecho retirado do capítulo de livro: Vianna, Ignácio & Colombini (2011). Acompanhamento terapêutico. Em Savoia (Org.), A Interface entre psicologia e psiquiatria (pp. 261-274). São Paulo: Roca].